domingo, janeiro 09, 2005

grilo

Um grilo preto, feio, escuro, terroso, roça as asas e não canta, in-comoda. Hoje não me deixou distrair com a tristeza da jovem que se repete, dizendo estar morta. Coisa que não duvido tenha acontecido enquanto adormeci e mais nada faço senão sonhar com ela para ver se estou acordado e tudo não passa dum pesadelo passado num blog gótico.

sábado, janeiro 08, 2005

horas

Quando o relógio da torre começou a dar horas estranhei e quis saber qual era o dia, a semana, o mês, o ano, o século, o milénio, e não havia nada disto, faltava inventar o tempo fora de horas. Só o relógio dava horas vazias, ocas, doentias, irregulares, espaçadas, até cantar o galo de madrugada. Isto aconteceu durante a noite, pareceu acabar durante o dia, até à noite do dia seguinte.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

outra

Outra igual à de ontem mas mais depravada: antes de ser esmagada, a caveira, era lixada e polida até poder ser partida por um sopro. Demorei tanto tempo que, não conseguindo evitar um suspiro, despedacei a caveira com o sopro. Sem conseguir chegar ao fim, cujo sentido estava a ser possível seguir, pareceu ir dar ao centro do labirinto.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

órbita

Uma destas histórias imaginei de ouvido, vê-la através duma órbita vazia de caveira usada em práticas de magia. Era lavada em sangue, regada de azeite, para acabar sendo despedaçada por um maço de ferro deixado cair do alto da cúpula duma sinagoga por um demente gá-gá com muito boa pontaria, conseguida em anos de prática. Até não precisar de respirar para continuar vivo.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

empenho

O isolamento faz o ruído de unhas tentando escrever na ardósia dum quadro negro, o som dum giz riscando a branco a invisibilidade impalpável das sensações gastas pelas unhas gastas que são um giz gasto, a chiar na lousa ideias, cujo pensar não ouso acompanhar. Acompanho, movido pela vertigem, o desempenho musical deste empenho destrutivo do isolamento, tentando fazer ao silêncio o mesmo que a coruja ao rato.

terça-feira, janeiro 04, 2005

caótica

A jovem é usada, violada, maltratada, tudo e nada. Na maior parte do dia delira, canta, ri e chora. Tenho-a ouvido repetir a sua história vezes sem conta, sempre de maneira diferente, até chegar à exaustão dum sentido ou da sua possibilidade, explorando até aos confins do razoável a imaginação, enveredando por uma ficção caótica onde descreve medos como se fossem seres vivos ou outras pessoas.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

luar e sombras

Ouvi uma voz vinda da cela da jovem e percebi que orava, elevando as palavras para ser ouvida pela Lua Cheia enchendo a noite de luar e sombras estáticas dos objectos hirtos. Da arquitectura de escadas, paredes, janelas, pilares, muros, vasos vazios e quebrados, um sino… na torre da igreja onde moro com a coruja que se alimenta de ratos apanhados a estas horas da noite, onde as garras ferem e o bico dela entra a carne, depois de rasgar a pele esgarçando o corpo, ainda vivo, até estar morto e comido.

domingo, janeiro 02, 2005

varrido

Hoje tive um pesadelo e acordei a tremer, temendo cair da trave a baixo. Tinham-me nascido asas nas costas, no peito, nas pernas, dos braços gelava friorento e falho, como pássaro aleijado. Abri os braços desejando voar, estilhacei o silêncio da noite gritando palavras obscenas, inventadas por um anti-cristo louco, varrido, desvairado, sem nexo, de sexo inchado. Tinha um abcesso num dente, a cara deformada.

sábado, janeiro 01, 2005

raptada

Fora raptada quando só orava, na ara solitária duma campa rasa. Nela fora chorar sua mãe que a deixara órfã, na companhia duma fortuna ganha pelo pai. Para ela um desconhecido, vitima de malária num oriente antigo cuja descrição lhe fora feita por ama desaparecida ainda na infância. Nada mais sei da jovem, a não ser tudo o que invento quando a ouço gemer e soluçar.